sábado, junho 02, 2018

Leucemia Promielocítica Aguda

Leucemia Promielocítica Aguda
LMA M3



A LMA M3 ou leucemia promielocítica aguda é uma leucemia que se caracteriza por alterações genéticas que envolvem o gene do Receptor α do Ácido Retinóico ( RARA ) e que se caracteriza por acumulação de promielócitos leucémicos na medula óssea e sangue periférico acompanhando-se de coagulopatia de consumo, que actualmente é a principal causa de mortalidade e morbilidade destes doentes..
Na maioria dos casos de LMA M3, há uma fusão do gene PML, do cromossoma 15, com o gene RARA , do cromossoma 17. Outras alterações cromossómicas são verificadas, mas muito mais raramente.
A fusão PML-RARA origina um mRNA que leva à síntese de uma proteína quimérica comprometedora da diferenciação celular granulocítica, no estado de promielócito. Esta proteína quimérica resultante é altamente sensível ao ácido transretinóico ( ATRA ) com consequente reinício de diferenciação celular. Devido a esta alta sensibilidade à terapêutica, a LMA M3 se tornou uma leucemia com quase total cura após tratamento correcto ( quase 99% de cura ). A mortalidade existente nestes doentes, quase na totalidade, se verifica nos primeiros 30 dias de doença por complicações hemorrágicas graves de órgãos vitais ( cérebro, pulmões e tracto digestivo ) ou por quadros trombóticos ou pelo síndrome da diferenciação.


A terapêutica deve ser iniciada logo que haja suspeita e ainda antes de ser confirmado o diagnóstico, por biologia molecular ou citogenética.

As leucemias agudas caracterizam-se pela presença de células hematopoiéticas primitivas – blastos – com progressão clínica rápida; contrastam assim com as leucemias crónicas em que as células se apresentam em estadios de maturação mais tardios, sendo assim mais semelhantes às células saudáveis e que preservam as suas funções fisiológicas e com um quadro clínico prolongado. Na leucemia aguda apresenta-se uma insuficiência da medula óssea por acumulação de blastos e ocorrendo infiltração de órgãos como baço, fígado, gânglios linfáticos, cérebro, meninges, pele e testículos.

A LMA M3 ou promielocítica é responsável por 10-15% de todas as leucemias mielóides agudas e resulta de translocação recíproca que fenotipicamente se apresenta por infiltração leucémica da medula óssea por promielócitos displásicos e concomitante coagulopatia grave e potencialmente fatal.


Leucemia mielóide aguda, segundo as normas da OMS, caracteriza-se pela presença de pelo menos 20% de blastos no sangue periférico ou medula óssea. No entanto, na presença de algumas anomalias genéticas específicas, pode-se fazer o diagnóstico de LMA com um valor percentual de blastos inferior a 20 no sangue periférico e medula óssea.


A LMA M3 apresenta infiltração medular por promielócitos displásicos com granulação abundante e bastonetes de Auer; frequentemente a coloração citoquímica. por mieloperoxidase e por Negro do Sudão é positiva. A variante LMA M3v, que corresponde a cerca de 20% das M3, é caracterizada por microgranulação e é mais frequentemente acompanhada por leucocitose com expressão CD2. A LMA M3 identifica-se pela alteração t(15;17)(q22;q21) apesar de existirem outras alterações citogenéticas mais raras, responsáveis por cerca de 2% dos casos de M3, sendo que a t(15;17) responde por 98% dos casos.


A LMA M3 é uma doença que resulta da translocação do gene do Receptor α do Ácido Retinóico ( RARA ) do braço longo do cromossoma 17, com o gene PML do braço longo do cromossoma 15, e que resulta numa formação de genes quiméricos e oncoproteínas de fusão. Outras translocações foram descobertas, sendo que todas envolvem o RARA, pelo que se concluiu que o rearranjo cromossómico envolvendo o gene RARA constitui a base da patogenia da leucemia a promielócitos. Apenas existe, conhecida, uma excepção a esta regra, sendo a leucemia a promielócitos que se associa à fusão NUP98/RARγ ( e não RARA ).
Os genes RARA e PML respondem por 98% dos casos de LMA M3. Nos restantes 2% os genes parceiros mais estudados são PLZF ( promyelocitic leukemia zinc finger ), NPM ( nucleophosmin ), NUMA ( nuclear mitotic apparatus ) e STAT5B que originam as nucleoproteínas de fusão denominadas no seu conjunto por X-RARA. Mais raramente o gene RARA se emparelha com outros genes originando a LMA M3.

Os retinóides são derivados da vitamina A, metabolitos activos dietéticos necessários ao organismo e essenciais ao desenvolvimento, proliferação e diferenciação celulares. O ácido 9-cis-retinóico e o ATRA ( ácido trans-retinóico ), produtos do metabolismo da vitamina A, têm uma função importante no processo de diferenciação mielóide por estimularem a granulopoiese. Duas classes de receptores proteicos nucleares são activadas, nomeadamente o receptor do ácido retinóico e os receptores X do ácido retinóico ( RAR e RXR ). Os retinóides actuam dependendo destes receptores intracelulares que existem em formas diversas e distribuídos por padrões característicos de cada tecido. Lembrar que o receptor da vitamina D ( VDR ) se associa ao RAR ou ao RXR para se ligar ao DNA no elemento responsivo do DNA.
A isoforma RARA é a mais importante para a granulopoiese, conseguindo dimerizar com o RXR na presença de concentração fisiológica de ATRA formando o complexo RARA/RXR com capacidade para activar ou reprimir a transcripção genética do gene alvo.

RARA consiste de um factor de transcripção que permite que o ácido retinóico se ligue a nível nuclear e que é activado por ATRA ou 9-cis-retinóico ao contrário deRXR apenas activado por 9-cis-retinóico e não por ATRA. Esta particularidade é de extrema importância pois que ATRA em doses suprafisiológicas se comporta como um gatilho com a capacidade de reinduzir a diferenciação dos promielócitos leucémicos.



A interacção RARA com RXR possibilita que complexos correpressores ( CoR ) e complexos coactivadores ( CoA ) a nível da cromatina sejam recrutados por forma a que a transcripção diferencial dos genes alvo seja regulada.
Na ausência do ligando, RARA está emparelhado a CoR; em presença de concentrações fisiológicas de ácido retinóico os complexos nucleares CoR ficam impedidos de se ligarem ao complexo RARA-RXR e assim fica favorecido o recrutamento de CoA com enzimas histona acetiltransferases, o que resulta numa hiperacetilação das histonas presentes nos elementos sensíveis ao ácido retinóico ( RARE ), com remodelação da cromatina e activação de transcripção dos genes.

A oncoproteina clássica resultante da fusão que envolve os genes PML e RARA na LMA M3 é fruto da translocação recíproca t(15;17)(q22;q21). Esta anormalidade genética resulta na formação de 2 genes híbridos: PML-RARA, localizado no derivativo do cromosoma 15, e RARA-PML, no derivativo do cromossoma 17. A transcripção da fusão PML-RARA é detectada em todos os casos com a translocação t(15;17) enquanto que a fusão recíproca RARA-PML apenas se encontra em 10-20% dos doentes.


Doentes em remissão completa a longo prazo podem expressar a transcripção do gene RARA-PML na ausência de PML-RARA, o que sugere ser a fusão PML-RARA a que possui a principal intervenção na leucemogénese da LPA.
O gene PML tem acção na supressão do crescimento celular e na regulação da apoptose, sendo que a proteína com propriedade de supressão tumoral codificada por este gene potencia a acção da p53 perante danos do DNA ou da transformação oncogénica.
A acetilação da p53 dá-se na presença de corpos nucleares ( PML-NB ) do gene PML e do coactivador histona acetiltransferase CBP, resultando na activação da transcripção. Este processo, fisiológico normal, pode sofrer antagonismo pela fusão PML-RARA pois para haver a acetilação do p53 é necessária a presença de PML-NB correctamente funcional. Assim, o bloqueio funcional de p53 na MLA M3 explica o facto de nesta patologia o p53 raramente ter mutações.



A proteína PML-RARA é duplamente negativa, comprometendo tanto o gene PML como o gene RARA, impedindo a activação dos genes envolvidos na diferenciação mielóide. Esta oncoproteína PML-RARA leva ao sequestro do RXR e dos cofactores de RARA, com inibição da função do RARA.
Também a proteína PML-RARA tem grande capacidade de ligação a muitos enzimas epigenéticos, como as desacetilases das histonas ( HDAC ), DNMT´s, histonas metiltransferases e proteínas ligadoras de domínio metil, o que leva à condensação da cromatina com repressão de transcripção havendo, desta forma, recrutamento elevado de CoR que dessensibilizam a PML-RARA em concentrações fisiológicas de ácido retinóico com silenciamento do gene alvo de RARA e bloqueio da diferenciação celular em estado promielócito.




Clínica

A sintomatologia de LPA é, no essencial, idêntica à das outras LMA, descrevendo-se fadiga, fraqueza e dispneia secundárias à anemia, contusões fáceis e hemorragias secundárias à trombocitopenia ou coagulopatias, febre e maior susceptibilidade a infecções devido à leucopenia.
Pancitopenia é frequente, aparecendo no entanto em 10-30% das situações uma leucocitose.


Coagulopatia é potencialmente fatal e constitui a situação mais perigosa para a vida do doente. Hemorragia de órgãos importantes, nomeadamente cérebro, pulmões e tracto gastrointestinal, podem ocorrer.
A causa de morte mais frequente nestes doentes é a hemorragia seguindo-se as infecções e o síndrome de diferenciação.

A coagulopatia presente é ocasionada de forma directa ou indirecta pelas células leucémicas, através da expressão dos indutores da coagulação e da fibrinólise, bem como pelo aumento das citoquinas e proteases. O quadro clínico é agravado pela trombocitopenia secundária a um comprometimento da produção plaquetária secundária à infiltração medular e também ao excessivo consumo periférico. Eventos trombóticos acontecem também.
Verifica-se que a coagulopatia é resultante do dano no endotélio e hipercoaguabilidade. O sistema fibrinolítico é um terceiro factor interferente na existência da coagulopatia. Verifica-se ainda um aumento dos marcadores da coagulação ou de fibrinólise. Consumo plaquetário, consumo de factores da coagulação, hipoperfusão tecidual e hemorragia verificam-se.

As células intervenientes nesta patologia, promielócitos leucémicos, expressam 2 procoagulantes, nomeadamente factor tecidual ( FT ) e procoagulante cancerígeno ( PC ), sendo que o FT tem o papel major como procoagulante no processo de iniciação da coagulação ao conjugar-se com o factor VII, activando-o, e posteriormente activando o factor X. O PC activa o factor X directamente. A activação do FT é desencadeada pela exteriorização dos fosfolípidos de membrana, o que pode explicar o maior potencial trombogéneo das células apoptóticas, sendo desta forma o estado de hipercoaguabilidade mais evidente em apoptose dos promielócitos leucémicos, seja em estado de proliferação leucémica activa ou em tratamento com ATRA, ATO e quimioterapia.



Em paralelo à hipercoaguabilidade, apresenta-se um estado de hiperfibrinólise que, ao contrário do que sucede na CID, onde esta hiperfibrinólise é devida à coagulação intravascular, na LPA jogam papel importante factores primários adicionais contribuintes para o estado de hiperfibrinólise. Um destes factores major é a hiperexpressão da anexina A2 ( receptor de superfície do plasminogéneo e do tPA ) e da uPA pelos promielócitos leucémicos. Também a plasmina e o activador do plasminogéneo se apresentam hiperexpressados e simultaneamente há uma diminuição dos valores de α2-antiplasmina, inibidor do activador do plasminogéneo tipo 1 ( que se encontra elevado se predominar o quadro tromboembólico ) e do inibidor da fibrinólise activável pela trombina ( TAFI ).
Também a proteína S100A, proteína de superfície inibidora do plasminogéneo, se encontra hiperexpressada nos promielócitos e liga-se ao plasminogéneo e a tPA estimulando a activação do plasminogéneo
Com uma marcada expressão de anexina A2 nos promielócitos, a actividade fibrinolítica aumentada é proporcional à proliferação leucémica. As complicações hemorrágicas nestes doentes são correlacionadas com a contagem inaugural dos leucócitos e não com os parâmetros hemostáticos. Dado a anorexina A2 se expressar mais nas células endoteliais da microvasculatura cerebral, isto explica a maior frquência de hemorragia intracraneana na LMA M3.
As citoquinas inflamatórias apresentam potencial procoagulante. A IL-1 apresenta-se em células leucémicas não linfoblásticas agudas, incluindo a LPA. O FT é regulado pela IL-1 e α-TNF nos monócitos e células endoteliais. O α-TNF também tem acção na apoptose celular ( notar que o FT é activado pela exteriorização dos fosfolípidos da membrana, o que justifica o maior potencial trombogénico das células apoptóticas ).
A elastase, uma protease granulocítica, é abundantemente produzida pelos promielócitos da LPA actuando na clivagem de fibrinigéneo e degradação dos inibidores fibrinolíticos levando à hiperfibrinólise. Micropartículas, habitualmente associadas a fenómenos tromboembólicos, também jogam papel importante na coagulopatia da LPA.
Ao contrário do que sucede na CID, na coagulopatia da LPA os níveis da Proteína C, Proteína S e AT III são preservados.



A mortalidade precoce, registada nos primeiros 30 dias da doença é actualmente a principal causa de falência terapêutica e é consequência da hemorragia e, menos frequentemente, infecção ou síndrome da diferenciação.
65-80% das hemorragias são intracraneanas na maioria dos casos intraparenquimatosas e frequentemente são fatais. Factores de risco para o desenvolvimento de complicações hemorrágicas são uma leucocitose superior a 10000 leucócitos/μl, um número elevado de blastos no sangue periférico ( superior a 30% ), idade superior a 60 anos, aumento da concentração de creatinina sérica ( refletindo lesão renal ) e baixa concentração de fibrinogéneo ( < 100 mg/dl ) refletindo hiperfibrinólise. Trombocitopenia grave é um factor de risco de hemorragia apesar de não haver correlação estreita entre o número de plaquetas e a incidência de hemorragia.
Com terapêutica adequada, os parâmetros da coagulação e perfil fibrinolítico tendem a normalizar em 14 dias apesar da clínica para o quadro hemorrágico resolver em 5-7 dias. O quadro clínico de hemorragia tende a ocorrer na apresentação da LPA, enquanto que o de tromboembolismo costuma revelar-se na fase pós-ATRA e incluem eventos arteriais e venosos com trombose venosa profunda, oclusão das veias porta e hepática e enfarte agudo do miocárdio. Ao contrário do que sucede na CID, a trombose dos microvasos é rara.
A variante microgranular da LPA ( LMA M3v ) associa-se à trombose da veia porta.



É importante, no estudo do sangue periférico, a pesquiza das células de Faggot, bem como o estudo citogenético com translocação t(15;17). Analiticamente encontra-se trombocitopenia e prolongamento do tempo de protrombina e aPTT, d-dímeros aumentados e diminuição da concentração do fibrinogéneo. Proteína C, proteína S e AT III não se encontram alterados, ao contrário do que se verifica na CID associada a sépsis ou outras neoplasias. Estas alterações não se encontram correlacionadas com a gravidade da clínica do quadro hemorrágico.



O diagnóstico provisório deve ser feito pela citomorfologia e clínica sendo que o tratamento deve iniciar-se de imediato e a confirmação do diagnóstico tem de ser realizada por RT-PCR e FISH. Não é correcto fazer o diagnóstico definitivo apenas pela morfologia e imunofenotipagem.



A imunofenotipagem ajuda no diagnóstico provisório da LPA sendo que se observa CD33 positivo e HLA-DR negativo habitualmente, bem como CD34 negativo. CD 11b e CD 11c negativos são altamente sensíveis para LPA mas, com terapêutica de diferenciação, pode o CD 11b, assim como o CD 16, serem expressados. CD 13 é ocasionalmente expressado ( é um marcador da linhagem mielóide ). CD 56 associa-se a pior prognóstico. A expressão aberrante CD2 encontra-se na variante M3v, bem como o CD34 também se pode expressar.
De elevada sensibilidade e especificidade é o painel CD 11b ( positivo na população mielóide ), ausência de CD 11c e HLA-DR ( em toda a população mielóide ).

O diagnóstico de LPA só pode ser feito por confirmação genética em células leucémicas, preferencialmente obtidas da medula óssea. A informação diagnóstica é obrigatória e feita pelo despiste da translocação t( 15;17 ) ou pelo gene híbrido PML-RARA, pois que a eficácia do tratamento de diferenciação depende da presença deste gene de fusão nas células leucémicas.


Prognóstico

A mortalidade precoce é a maior barreira à cura da LPA. Quadro hemorrágico grave, particularmente hemorragia intracraneana, pulmonar ou do tracto digestivo, é potencial causa de morte nos primeiros 30 dias da doença. Diáteses hemorrágicas se encontram muito correlacionadas com o número de leucócitos presentes, sendo tanto mais grave quanto mais acentuado for a leucocitose. Idade superior a 60 anos, função renal comprometida e alteração dos parâmetros da coagulação são potenciais factores de prognóstico da LPA. O número de blastos no sangue periférico é um importante factor preditivo independente de normalidade precoce por hemorragia. O tipo de breakpoint BCR3 do PML-RARA tem importância relevante como factor de mau prognóstico na LPA bem como a febre, LDH aumentada e alteração dos parâmetros da coagulação.