Leucemia
Promielocítica Aguda
LMA M3
A LMA M3 ou leucemia promielocítica aguda é uma
leucemia que se caracteriza por alterações genéticas que envolvem
o gene do Receptor α
do Ácido Retinóico ( RARA ) e que se caracteriza por acumulação
de promielócitos leucémicos na medula óssea e sangue periférico
acompanhando-se de coagulopatia de consumo, que actualmente é a
principal causa de mortalidade e morbilidade destes doentes..
Na maioria dos casos
de LMA M3, há uma fusão do gene PML, do cromossoma 15, com o gene
RARA , do cromossoma 17. Outras alterações cromossómicas são
verificadas, mas muito mais raramente.
A fusão PML-RARA
origina um mRNA que leva à síntese de uma proteína quimérica
comprometedora da diferenciação celular granulocítica, no estado
de promielócito. Esta proteína quimérica resultante é altamente
sensível ao ácido transretinóico ( ATRA ) com consequente
reinício de diferenciação celular. Devido a esta alta
sensibilidade à terapêutica, a LMA M3 se tornou uma leucemia com
quase total cura após tratamento correcto ( quase 99% de cura ). A
mortalidade existente nestes doentes, quase na totalidade, se
verifica nos primeiros 30 dias de doença por complicações
hemorrágicas graves de órgãos vitais ( cérebro, pulmões e tracto
digestivo ) ou por quadros trombóticos ou pelo síndrome da
diferenciação.
A terapêutica deve
ser iniciada logo que haja suspeita e ainda antes de ser confirmado o
diagnóstico, por biologia molecular ou citogenética.
As leucemias agudas
caracterizam-se pela presença de células hematopoiéticas
primitivas – blastos – com progressão clínica rápida;
contrastam assim com as leucemias crónicas em que as células se
apresentam em estadios de maturação mais tardios, sendo assim mais
semelhantes às células saudáveis e que preservam as suas funções
fisiológicas e com um quadro clínico prolongado. Na leucemia aguda
apresenta-se uma insuficiência da medula óssea por acumulação
de blastos e ocorrendo infiltração de órgãos como baço, fígado,
gânglios linfáticos, cérebro, meninges, pele e testículos.
A LMA M3 ou
promielocítica é responsável por 10-15% de todas as leucemias
mielóides agudas e resulta de translocação recíproca que
fenotipicamente se apresenta por infiltração leucémica da medula
óssea por promielócitos displásicos e concomitante coagulopatia
grave e potencialmente fatal.
Leucemia mielóide
aguda, segundo as normas da OMS, caracteriza-se pela presença de
pelo menos 20% de blastos no sangue periférico ou medula óssea. No
entanto, na presença de algumas anomalias genéticas específicas,
pode-se fazer o diagnóstico de LMA com um valor percentual de
blastos inferior a 20 no sangue periférico e medula óssea.
A LMA M3 apresenta
infiltração medular por promielócitos displásicos com granulação
abundante e bastonetes de Auer; frequentemente a coloração
citoquímica. por mieloperoxidase e por Negro do Sudão é
positiva. A variante LMA M3v, que corresponde a cerca de 20% das M3,
é caracterizada por microgranulação e é mais frequentemente
acompanhada por leucocitose com expressão CD2. A LMA M3
identifica-se pela alteração t(15;17)(q22;q21) apesar de existirem
outras alterações citogenéticas mais raras, responsáveis por
cerca de 2% dos casos de M3, sendo que a t(15;17) responde por 98%
dos casos.
A LMA M3 é uma
doença que resulta da translocação do gene do Receptor α
do Ácido Retinóico ( RARA ) do braço longo do cromossoma 17, com o
gene PML do braço longo do cromossoma 15, e que resulta numa
formação de genes quiméricos e oncoproteínas de fusão. Outras
translocações foram descobertas, sendo que todas envolvem o RARA,
pelo que se concluiu que o rearranjo cromossómico envolvendo o gene
RARA constitui a base da patogenia da leucemia a promielócitos.
Apenas existe, conhecida, uma excepção a esta regra, sendo a
leucemia a promielócitos que se associa à fusão NUP98/RARγ ( e
não RARA ).
Os genes RARA e PML
respondem por 98% dos casos de LMA M3. Nos restantes 2% os genes
parceiros mais estudados são PLZF ( promyelocitic leukemia zinc
finger ), NPM ( nucleophosmin ), NUMA ( nuclear mitotic apparatus ) e
STAT5B que originam as nucleoproteínas de fusão denominadas no seu
conjunto por X-RARA. Mais raramente o gene RARA se emparelha com
outros genes originando a LMA M3.
Os retinóides são
derivados da vitamina A, metabolitos activos dietéticos necessários
ao organismo e essenciais ao desenvolvimento, proliferação e
diferenciação celulares. O ácido 9-cis-retinóico e o ATRA ( ácido
trans-retinóico ), produtos do metabolismo da vitamina A, têm uma
função importante no processo de diferenciação mielóide por
estimularem a granulopoiese. Duas classes de receptores proteicos
nucleares são activadas, nomeadamente o receptor do ácido retinóico
e os receptores X do ácido retinóico ( RAR e RXR ). Os retinóides
actuam dependendo destes receptores intracelulares que existem em
formas diversas e distribuídos por padrões característicos de cada
tecido. Lembrar que o receptor da vitamina D ( VDR ) se associa ao
RAR ou ao RXR para se ligar ao DNA no elemento responsivo do DNA.
A isoforma RARA é a
mais importante para a granulopoiese, conseguindo dimerizar com o
RXR na presença de concentração fisiológica de ATRA formando o
complexo RARA/RXR com capacidade para activar ou reprimir a
transcripção genética do gene alvo.
RARA consiste de um
factor de transcripção que permite que o ácido retinóico se ligue
a nível nuclear e que é activado por ATRA ou 9-cis-retinóico ao
contrário deRXR apenas activado por 9-cis-retinóico e não por
ATRA. Esta particularidade é de extrema importância pois que ATRA
em doses suprafisiológicas se comporta como um gatilho com a
capacidade de reinduzir a diferenciação dos promielócitos
leucémicos.
A interacção RARA
com RXR possibilita que complexos correpressores ( CoR ) e complexos
coactivadores ( CoA ) a nível da cromatina sejam recrutados por
forma a que a transcripção diferencial dos genes alvo seja
regulada.
Na ausência do
ligando, RARA está emparelhado a CoR; em presença de concentrações
fisiológicas de ácido retinóico os complexos nucleares CoR ficam
impedidos de se ligarem ao complexo RARA-RXR e assim fica favorecido
o recrutamento de CoA com enzimas histona acetiltransferases, o que
resulta numa hiperacetilação das histonas presentes nos elementos
sensíveis ao ácido retinóico ( RARE ), com remodelação da
cromatina e activação de transcripção dos genes.
A oncoproteina
clássica resultante da fusão que envolve os genes PML e RARA na LMA
M3 é fruto da translocação recíproca t(15;17)(q22;q21). Esta
anormalidade genética resulta na formação de 2 genes híbridos:
PML-RARA, localizado no derivativo do cromosoma 15, e RARA-PML, no
derivativo do cromossoma 17. A transcripção da fusão PML-RARA é
detectada em todos os casos com a translocação t(15;17) enquanto
que a fusão recíproca RARA-PML apenas se encontra em 10-20% dos
doentes.
Doentes em remissão
completa a longo prazo podem expressar a transcripção do gene
RARA-PML na ausência de PML-RARA, o que sugere ser a fusão PML-RARA
a que possui a principal intervenção na leucemogénese da LPA.
O gene PML tem acção
na supressão do crescimento celular e na regulação da apoptose,
sendo que a proteína com propriedade de supressão tumoral
codificada por este gene potencia a acção da p53 perante danos do
DNA ou da transformação oncogénica.
A acetilação da
p53 dá-se na presença de corpos nucleares ( PML-NB ) do gene PML e
do coactivador histona acetiltransferase CBP, resultando na activação
da transcripção. Este processo, fisiológico normal, pode sofrer
antagonismo pela fusão PML-RARA pois para haver a acetilação do
p53 é necessária a presença de PML-NB correctamente funcional.
Assim, o bloqueio funcional de p53 na MLA M3 explica o facto de nesta
patologia o p53 raramente ter mutações.
A proteína PML-RARA
é duplamente negativa, comprometendo tanto o gene PML como o gene
RARA, impedindo a activação dos genes envolvidos na diferenciação
mielóide. Esta oncoproteína PML-RARA leva ao sequestro do RXR e dos
cofactores de RARA, com inibição da função do RARA.
Também a proteína
PML-RARA tem grande capacidade de ligação a muitos enzimas
epigenéticos, como as desacetilases das histonas ( HDAC ), DNMT´s,
histonas metiltransferases e proteínas ligadoras de domínio metil,
o que leva à condensação da cromatina com repressão de
transcripção havendo, desta forma, recrutamento elevado de CoR que
dessensibilizam a PML-RARA em concentrações fisiológicas de ácido
retinóico com silenciamento do gene alvo de RARA e bloqueio da
diferenciação celular em estado promielócito.
Clínica
A sintomatologia de
LPA é, no essencial, idêntica à das outras LMA, descrevendo-se
fadiga, fraqueza e dispneia secundárias à anemia, contusões fáceis
e hemorragias secundárias à trombocitopenia ou coagulopatias, febre
e maior susceptibilidade a infecções devido à leucopenia.
Pancitopenia é
frequente, aparecendo no entanto em 10-30% das situações uma
leucocitose.
Coagulopatia é
potencialmente fatal e constitui a situação mais perigosa para a
vida do doente. Hemorragia de órgãos importantes, nomeadamente
cérebro, pulmões e tracto gastrointestinal, podem ocorrer.
A causa de morte
mais frequente nestes doentes é a hemorragia seguindo-se as
infecções e o síndrome de diferenciação.
A coagulopatia
presente é ocasionada de forma directa ou indirecta pelas células
leucémicas, através da expressão dos indutores da coagulação e
da fibrinólise, bem como pelo aumento das citoquinas e proteases. O
quadro clínico é agravado pela trombocitopenia secundária a um
comprometimento da produção plaquetária secundária à infiltração
medular e também ao excessivo consumo periférico. Eventos
trombóticos acontecem também.
Verifica-se que a
coagulopatia é resultante do dano no endotélio e
hipercoaguabilidade. O sistema fibrinolítico é um terceiro factor
interferente na existência da coagulopatia. Verifica-se ainda um
aumento dos marcadores da coagulação ou de fibrinólise. Consumo
plaquetário, consumo de factores da coagulação, hipoperfusão
tecidual e hemorragia verificam-se.
As células
intervenientes nesta patologia, promielócitos leucémicos, expressam
2 procoagulantes, nomeadamente factor tecidual ( FT ) e procoagulante
cancerígeno ( PC ), sendo que o FT tem o papel major como
procoagulante no processo de iniciação da coagulação ao
conjugar-se com o factor VII, activando-o, e posteriormente activando
o factor X. O PC activa o factor X directamente. A activação do FT
é desencadeada pela exteriorização dos fosfolípidos de membrana,
o que pode explicar o maior potencial trombogéneo das células
apoptóticas, sendo desta forma o estado de hipercoaguabilidade mais
evidente em apoptose dos promielócitos leucémicos, seja em estado
de proliferação leucémica activa ou em tratamento com ATRA, ATO e
quimioterapia.
Em paralelo à
hipercoaguabilidade, apresenta-se um estado de hiperfibrinólise que,
ao contrário do que sucede na CID, onde esta hiperfibrinólise é
devida à coagulação intravascular, na LPA jogam papel importante
factores primários adicionais contribuintes para o estado de
hiperfibrinólise. Um destes factores major é a hiperexpressão da
anexina A2 ( receptor de superfície do plasminogéneo e do tPA ) e
da uPA pelos promielócitos leucémicos. Também a plasmina e o
activador do plasminogéneo se apresentam hiperexpressados e
simultaneamente há uma diminuição dos valores de α2-antiplasmina,
inibidor do activador do plasminogéneo tipo 1 ( que se encontra
elevado se predominar o quadro tromboembólico ) e do inibidor da
fibrinólise activável pela trombina ( TAFI ).
Também a proteína
S100A, proteína de superfície inibidora do plasminogéneo, se
encontra hiperexpressada nos promielócitos e liga-se ao
plasminogéneo e a tPA estimulando a activação do plasminogéneo
Com uma marcada
expressão de anexina A2 nos promielócitos, a actividade
fibrinolítica aumentada é proporcional à proliferação leucémica.
As complicações hemorrágicas nestes doentes são correlacionadas
com a contagem inaugural dos leucócitos e não com os parâmetros
hemostáticos. Dado a anorexina A2 se expressar mais nas células
endoteliais da microvasculatura cerebral, isto explica a
maior frquência de hemorragia intracraneana na LMA M3.
As citoquinas
inflamatórias apresentam potencial procoagulante. A IL-1
apresenta-se em células leucémicas não linfoblásticas agudas,
incluindo a LPA. O FT é regulado pela IL-1 e α-TNF nos monócitos e
células endoteliais. O α-TNF também tem acção na apoptose
celular ( notar que o FT é activado pela exteriorização dos
fosfolípidos da membrana, o que justifica o maior potencial
trombogénico das células apoptóticas ).
A elastase, uma
protease granulocítica, é abundantemente produzida pelos
promielócitos da LPA actuando na clivagem de fibrinigéneo e
degradação dos inibidores fibrinolíticos levando à
hiperfibrinólise. Micropartículas, habitualmente associadas a
fenómenos tromboembólicos, também jogam papel importante na
coagulopatia da LPA.
Ao contrário do que
sucede na CID, na coagulopatia da LPA os níveis da Proteína C,
Proteína S e AT III são preservados.
A mortalidade
precoce, registada nos primeiros 30 dias da doença é actualmente a
principal causa de falência terapêutica e é consequência da
hemorragia e, menos frequentemente, infecção ou síndrome da
diferenciação.
65-80% das
hemorragias são intracraneanas na maioria dos casos
intraparenquimatosas e frequentemente são fatais. Factores de risco
para o desenvolvimento de complicações hemorrágicas são uma
leucocitose superior a 10000 leucócitos/μl, um número elevado de
blastos no sangue periférico ( superior a 30% ), idade superior a 60
anos, aumento da concentração de creatinina sérica ( refletindo
lesão renal ) e baixa concentração de fibrinogéneo ( < 100
mg/dl ) refletindo hiperfibrinólise. Trombocitopenia grave é um
factor de risco de hemorragia apesar de não haver correlação
estreita entre o número de plaquetas e a incidência de hemorragia.
Com terapêutica
adequada, os parâmetros da coagulação e perfil fibrinolítico
tendem a normalizar em 14 dias apesar da clínica para o quadro
hemorrágico resolver em 5-7 dias. O quadro clínico de hemorragia
tende a ocorrer na apresentação da LPA, enquanto que o de
tromboembolismo costuma revelar-se na fase pós-ATRA e incluem
eventos arteriais e venosos com trombose venosa profunda, oclusão
das veias porta e hepática e enfarte agudo do miocárdio. Ao
contrário do que sucede na CID, a trombose dos microvasos é rara.
A variante
microgranular da LPA ( LMA M3v ) associa-se à trombose da veia
porta.
É importante, no
estudo do sangue periférico, a pesquiza das células de Faggot, bem
como o estudo citogenético com translocação t(15;17).
Analiticamente encontra-se trombocitopenia e prolongamento do tempo
de protrombina e aPTT, d-dímeros aumentados e diminuição da
concentração do fibrinogéneo. Proteína C, proteína S e AT III
não se encontram alterados, ao contrário do que se verifica na CID
associada a sépsis ou outras neoplasias. Estas alterações não se
encontram correlacionadas com a gravidade da clínica do quadro
hemorrágico.
O diagnóstico
provisório deve ser feito pela citomorfologia e clínica sendo que o
tratamento deve iniciar-se de imediato e a confirmação do
diagnóstico tem de ser realizada por RT-PCR e FISH. Não é correcto
fazer o diagnóstico definitivo apenas pela morfologia e
imunofenotipagem.
A imunofenotipagem
ajuda no diagnóstico provisório da LPA sendo que se observa CD33
positivo e HLA-DR negativo habitualmente, bem como CD34 negativo. CD
11b e CD 11c negativos são altamente sensíveis para LPA mas, com
terapêutica de diferenciação, pode o CD 11b, assim como o CD 16,
serem expressados. CD 13 é ocasionalmente expressado ( é um marcador
da linhagem mielóide ). CD 56 associa-se a pior prognóstico. A
expressão aberrante CD2 encontra-se na variante M3v, bem como o CD34
também se pode expressar.
De elevada
sensibilidade e especificidade é o painel CD 11b ( positivo na
população mielóide ), ausência de CD 11c e HLA-DR ( em toda a
população mielóide ).
O diagnóstico de
LPA só pode ser feito por confirmação genética em células
leucémicas, preferencialmente obtidas da medula óssea. A informação
diagnóstica é obrigatória e feita pelo despiste da translocação
t( 15;17 ) ou pelo gene híbrido PML-RARA, pois que a eficácia do
tratamento de diferenciação depende da presença deste gene de
fusão nas células leucémicas.
Prognóstico
A mortalidade
precoce é a maior barreira à cura da LPA. Quadro hemorrágico
grave, particularmente hemorragia intracraneana, pulmonar ou do
tracto digestivo, é potencial causa de morte nos primeiros 30 dias
da doença. Diáteses hemorrágicas se encontram muito
correlacionadas com o número de leucócitos presentes, sendo tanto
mais grave quanto mais acentuado for a leucocitose. Idade superior a
60 anos, função renal comprometida e alteração dos parâmetros da
coagulação são potenciais factores de prognóstico da LPA. O
número de blastos no sangue periférico é um importante factor
preditivo independente de normalidade precoce por hemorragia. O tipo
de breakpoint BCR3 do PML-RARA tem importância relevante como factor
de mau prognóstico na LPA bem como a febre, LDH aumentada e
alteração dos parâmetros da coagulação.
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