domingo, novembro 18, 2012

Utilidade de biomarcadores na doença inflamatória intestinal

Utilidade de biomarcadores na doença inflamatória intestinal

As DII são processos crónicos, idiopáticos, recorrentes,  em  que episódios de inflamação do tracto gastrointestinal intercalam com períodos assintomáticos. Os sintomas predominantes são dor abdominal, diarreia e hemorragia rectal. Frequentemente, sintomas extradigestivos se observam, atingindo a pele, olhos, articulações, pulmões, genitália e fígado, que originam diversos sintomas. Enquanto a colite ulcerosa é uma doença da mucosa do cólon, que se inicia distalmente e evolui até ao cego, a doença de Crohn pode afectar todo o tubo digestivo, desde a boca até ao ânus, sendo mais comum afectar o íleo terminal e o cólon, havendo áreas afectadas intercaladas por áreas totalmente sãs. A inflamação na doença de Crohn é transmural e caracteriza-se pela presença de granuloma epitelióide não caseoso.
A incidência varia com a região do mundo e tem vindo a aumentar nos últimos anos.
A fisiopatologia da DII é desconhecida, mas mecanismos como resposta imunológica anormal à flora entérica normal ou a componentes dietéticos, ou até mesmo resposta imunológica anormal a patogéneos específicos, são referidos. Têm sido referidas interacções entre células imunocompetentes da mucosa, susceptibilidade genética do hospedeiro e factores ambientais, incluindo a microflora intestinal e factores dietéticos. Na DII, em fase activa, há aumento das citoquinas pro-inflamatórias como a TNF alfa, IL1 beta, ou deficiência da IL10, uma citoquina anti-inflamatória.
Mudanças ambientais, como melhoria das condições de higiene, consumo de alimentos estéreis, não fermentados, vacinações e idade da primeira exposição a patogéneos intestinais, podem afectar o desenvolvimento do sistema imune da mucosa, da microbiota ou de ambos. Tabagismo, anti-inflamatórios não esteróides, stress e apendicectomia ( o apêndice é o reservatório das bactérias que constituem a flora intestinal comensal ) também estão envolvidos na patogénese da DII. O tabagismo afecta a imunidade celular e humoral, reduz a motilidade colónica e aumenta a produção de muco no cólon. Enquanto que na doença de Crohn o tabagismo é um factor muito prejudicial, na colite ulcerosa parece ser um factor protector no curso da doença.
O consumo dos anti-inflamatórios não esteróides e o stress relacionam-se com a recidiva da doença.
Há forte evidência da influência genética na DII. A primeira mutação associada à doença de Crohn foi identificada no cromossoma 16 ( IBD 1 ) com o NOD2/CARD15 encontrada em cerca de 30% dos doentes. A mutação CARD15 pode promover a distinção de subtipos clínicos da doença de Crohn com envolvimento ileal, doença fibroestenosante ou início precoce da doença.
Encontra-se em discussão a participação do Mycobacterium avium paratuberculosis como possível agente etiológico.
O diagnóstico de DII, pode ser difícil quando a clínica é ambígua. Geralmente o diagnóstico é baseado na história clínica, no exame físico e exames endoscópicos, radiológicos e anatomopatológicos. Marcadores serológicos, particularmente pANCA e ASCA têm tido importância no diagnóstico. O ASCA é encontrado em 50-70% dos doentes com doença de Crohn. O valor preditivo do ASCA IgG e ASCA IgA é de 100%. Não se verificou correlação do ASCA com a localização da doença de Crohn, a sua duração, actividade, complicações e resposta terapêutica. Resultados de ASCA positivo, em conjunto com pANCA negativo, relacionam-se em 80% dos casos com doença de Crohn, enquanto que ASCA negativo e pANCA positivo relacionam-se em 63% dos casos com colite ulcerosa.
Obtido o controlo clínico sintomático destes doentes, passa-se à fase de manutenção terapêutica, que objectiva manter o doente sem sintomatologia e com boa qualidade de vida. As fases de recaída acontecem, mesmo sob terapêutica, devida à recrudescência do processo inflamatório.
Determinar o grau de actividade da doença é de grande importância para monitorizar a evolução clínica e ajustar a terapêutica. Embora a sintomatologia apresentada pelo doente seja indicativa de inflamação e da actividade da doença, ela é subjectiva, e pode ser influenciada por factores não inflamatórios da doença, como as estenoses por cicatrização e fibrose, má absorpção dos sais biliares, micro e macronutrientes.
Há vários índices de avaliação da actividade da doença, sendo uns com base nos dados clínicos ( CDAI ), outros baseados nos dados da endoscopia ( CDEIS, SES-CD ), ou na combinação dos dois.
O score do CDAI varia de 0 a 600 pontos, considerando-se um valor de menos de 150 pontos como estando em remissão clínica, 150 a 219 pontos de doença activa leve, 220 a 450 pontos de doença moderada e acima de 450 pontos como grave. A ocorrência de remissão clínica acontece quando a CDAI cai para menos de 150 pontos, enquanto uma queda de 70 a 100 pontos indica que está a haver resposta clínica. O CDAI não é um teste preciso para doentes com fistulas, estenoses ou cirúrgias prévias.
Outros índices com base na clínica existem, como sendo o índice de Van Hees ou o índice de Harvey-Bradshaw, que no entanto são menos utilizados.
O uso de índices endoscópicos é importante, pois nem sempre as queixas dos doentes refletem a gravidade e extensão da doença.
Os marcadores laboratoriais ainda são, por muitos considerados, o padrão ouro da avaliação da inflamação. A VS, PCR, contagem de leucócitos e plaquetas, hemoglobina, siderémia e albumina têm sido descritos como parâmetros avaliadores da inflamação.
A VS pode ser influenciada pelo tamanho, peso e número dos eritrócitos assim como por outros constituintes plasmáticos como as imunoglobulinas.
A PCR, proteina de fase aguda produzida nos hepatócitos e regulada pela IL6, IL1 ou TNF alfa, com uma semi-vida de 19 horas, é um marcador de confiança nos processos inflamatórios, e apresenta-se aumentada em várias situações patológicas.
A leucocitose pode ser provocada pela doença em si mesma ou pela corticoterapia utilizada. Também o número de plaquetas pode estar aumentado na inflamação. Estes parâmetros, bem como a siderémia, hemoglobina e albuminemia, não são parâmetros específicos das DII em fase activa, o que dificulta a sua utilização como marcadores da actividade da doença.
A colonoscopia com biópsia é considerado o melhor método para avaliar a inflamação, sua localização, extensão e gravidade. Outros factores estão em estudo com vista à real avaliação inflamatória como sendo o IL6, factor de crescimento do endotélio e factores de coagulação ligados à inflamação intestinal. O IL6 tem actividade inflamatória intestinal. O factor de crescimento endotelial é uma citoquina libertada pelas células inflamatórias que aumenta a permeabilidade vascular e a angiogénese. A activação da cascata da coagulação tem sido indicada como parte da patogénese da DII.
Biomarcadores potentes da inflamação da mucosa intestinal têm sido descritos, de entre marcadores fecais que são proteinas dos grânulos dos neutrófilos, e que incluem a lactoferrina, calprotectina, elastase de polimorfonucleases, lisozima e outros.
A lactoferrina é uma glicoproteina ligada ao ferro, resistente à proteólise, secretada pela maioria das mucosas de membrana. É o maior componente dos grânulos secundários dos polimorfonucleares, que são os primeiros a actuarem na resposta inflamatória aguda. Outras células hematopoiéticas não contêm lactoferrina. Pela infiltração da mucosa, por parte dos neutrófilos durante a inflamação aguda, a lactoferrina é excretada pelas fezes em maior quantidade.
A calprotectina é uma proteína ligada ao cálcio, e constitui 5% da proteína total e 60% da proteína do citossol dos neutrófilos. Com propriedades bacteriostáticas e fungistácticas, apresenta-se nas fezes em concentrações 6 vezes superiores às observadas no plasma.
Elastase dos polimorfonucleares, é uma proteina neutra armazenada nos grânulos azurófilos dos polimorfonucleares, libertada destas células nos processos inflamatórios. A lisozima é uma enzima dos neutrófilos que cataliza a hidrólise das paredes celulares das bactérias gram positivas.
A lactoferrina e a calprotectina têm sido comparadas com os diversos índices de actividade da doença, sejam clínicos sejam endoscópicos, na verificação da inflamação intestinal em doentes com DII. Os resultados têm vindo a mostrar-se promissores, evidenciando que estes marcadores são úteis na detecção da inflamação além de predizerem a recidiva, em até um ano. Os níveis de lactoferrina e calprotectina são significativamente superiores nas fezes de doentes em fase activa comparativamente com os em fase de remissão.
A lactoferrina parece ser o mais eficiente marcador de entre todos os derivados dos neutrófilos na avaliação da inflamação.
A calprotectina tem uma sensibilidade de 84%, especificidade de 96%, valor preditivo positivo de 95% e valor preditivo negativo de 85% na discriminação da DII com o sídrome do cólon irritável.
Estes marcadores fecais também são bons na previsão das recidivas quando a doença está em remissão.
A conversão da concentração de calprotectina fecal de ng/ml para mg/Kg faz-se pela utilização de um factor de 2.5 que se multiplica à concentração em ng/ml

Comparando a CDAI com a avaliação histopatológica dos doentes com doença de Crohn, verifica-se que a grande maioria dos doentes apresentam valores de CDAI não compatíveis com a avaliação endoscópica, já que valores inferiores ao nível de remissão cursam com inflamação histológica. No entanto, níveis acima de remissão no CDAI ( CDAI > 150 ) concordam sempre com a presença de inflamação a nível da mucosa. Já aquando da utilização do CDEIS, o paralelismo de resultados positivos deste score com a actividade inflamatória da mucosa é quase total.
Parâmetros laboratoriais ( VS, PCR, hemoglobina, hematócrito, leucócitos e plaquetas ) têm sido estudados para determinação da actividade inflamatória da mucosa intestinal na doença de Crohn. De todos estes exames, apenas a PCR apresentou diferenças estatisticamente significativas quando comparada à avaliação histopatológica.
De uma forma geral a lactoferrina e a calprotectina apresentam concordância estatisticamente significativa comparadas com o PCR.
Até ao momento, a melhor forma de avaliar a inflamação da mucosa intestinal é a avaliação histológica. Os sintomas dos doentes, ainda que indicativos de inflamação e da actividade da doença, são subjectivos, e podem estar influenciados por outras situações para além da inflamação como sejam a fibrose, por exemplo.
Verifica-se frequentemente que valores de CDAI compatíveis com ausência de inflamação cursam com inflamação histologicamente comprovada. Isto deve-se, provavelmente, a que a CDAI não reflete a inflamação da mucosa que pode persistir após o desaparecimento dos sintomas.
A avaliação colonoscópica apresenta significativa correlação com os dados histológicos. Até ao momento, o índice CDEIS é considerado o melhor entre os índices endoscópicos usados.
A PCR tem sido considerada um bom parâmetro de avaliação da actividade inflamatória da mucosa intestinal. Embora a PCR, único parâmetro laboratorial, estatisticamente relevante na avaliação da actividade inflamatória, tenha tido boa correlação com os dados histológicos, verifica-se uma sensibilidade relativamente baixa ( 58% ). Todos os outros parâmetros hematológicos não conseguiram indicar processo inflamatório. No entanto, o controlo clínico da DII a partir dos dados hematológicos mostra-se inferior aos resultados da colonoscopia e histologia.
Uma das formas de avaliar a inflamação é a análise da infiltração de neutrófilos na mucosa intestinal e transmigração para o lúmen. A lactoferrina é o principal componente dos grânulos secundários dos neutrófilos, que desgranulam na inflamação. Durante a inflamação intestinal há um rápido aumento da lactoferrina fecal, que corre paralelamente às alterações observadas por colonoscopia e histopatológicas, o que apoia a ideia de a lactoferrina ser um marcador sensível e específico para identificar a actividade inflamatória nos doentes. As concentrações de lactoferrina fecal são significativamente maiores na doença activa comparada com a doença em remissão.
A calprotectina, outro marcador derivado dos neutrófilos, tem sido promissor na identificação da doença activa.
Valores de calprotectina acima de 50 mg/Kg são considerados anormais. Em doentes com doença activa, valores de 200 mg/Kg a 2000 mg/Kg ( 80 ng/ml a 800 ng/ml ) podem ser encontrados.
A calprotectina apresenta uma sensibilidade inferior à lactoferrina ( detecta os doentes com inflamação com maior dificuldade do que a lactoferrina ) mas tem uma especificidade de 100% ( todos os doentes acima do valor corte para a calprotectina apresentam inflamação histológica ). A calprotectina relaciona-se muito bem com a histologia. A calprotectina é uma proteina estável nas fezes à temperatura ambiente e resistente ao calor. Níveis de inflamação mais intensos associam-se a valores elevados de calprotectina, demonstrando correlação significativa entre os níveis da calprotectina e a gravidade da inflamação. Em vários estudos, comprovou-se que a calprotectina se correlaciona com a gravidade da inflamação, extensão da doença e combinação de ambas, o que sugere que este teste seja influenciado pelo tamanho da área do intestino lesada e pela gravidade da inflamação.
A comparação da lactoferrina com a avaliação macroscópica nos doentes com doença de Crohn foi significativa. A calprotectina também apresenta correlação significativa com o índice CDEIS. As concentrações de calprotectina correlacionam-se fundamentalmente com os índices histológicos, mais que com os índices clínicos ou endoscópicos, o que é muito importante, pois sugere que a calprotectina detecta inflamação não visualizada na macroscopia.
A utilização de 2 ou mais marcadores fecais não aumenta a acuidade na detecção da inflamação da mucosa relativamente ao uso de um só marcador fecal. No entanto. enquanto a lactoferrina apresenta maior capacidade para detectar a inflamação quando presente, a calprotectina mostrou maior capacidade de detectar ausência de inflamação quando ela não existe.
Doentes com baixos níveis de calprotectina apresentam melhor prognóstico do que os que possuem altos níveis. Desta forma, a avaliação quantitativa da calprotectina pode estimar os riscos de recidiva. A calprotectina tem o seu valor limitado aquando do uso de anti-inflamatórios, inibidores da bomba de protões e nos doentes com cirrose hepática.
A calprotectina pode ser utilizada como método de despiste em familiares de doentes com doença de Crohn. 49% dos familiares de primeiro grau de doentes apresentam níveis elevados de calprotectina mas só 5-10% desenvolvem a doença.
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Do atrás exposto se conclui:
  • lactoferrina e calprotectina fecais são marcadores sensíveis e específicos para detectar inflamação intestinal em doentes com DII
  • os valores da calprotectina fecal correlacionam-se bem com o grau de inflamação da mucosa intestinal
  • a associação de 2 ou mais marcadores fecais de origem nos neutrófilos não aumenta a possibilidade de detecção da actividade inflamatória
  • os marcadores fecais são úteis tanto na doença de Crohn como na colite ulcerosa
  • índices que utilizam dados clínicos e endoscópicos, como o MMDAI, ou só endoscópicos, como o CDEIS, são melhores marcadores da actividade inflamatória do que índices exclusivamente clínicos, como o CDAI
  • com excepção do PCR, exames hematológicos não são bons marcadores da actividade inflamatória
A lactoferrina e a calprotectina fecais são marcadores sensíveis e específicos para detectar inflamação intestinal. Os valores da calprotectina fecal têm correlação proporcional ao grau de inflamação da mucosa intestinal.

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